Os caminhos para a aviação sustentável e seus desafios
Aviões híbridos, I.A. e biocombustíveis são alternativas de um mundo de impasses tecnológicos, socioambientais e econômicos na busca pela transição sustentável de uma das indústrias mais poluentes do setor de transportes
Quando pensamos em um futuro sustentável, é comum imaginar carros elétricos, colinas preenchidas de usinas eólicas e coberturas de prédios forradas de painéis solares. Além de falho em muitos sentidos, esse imaginário geralmente deixa de lado o setor da aviação. E não é por acaso: é um setor onde a transição sustentável é cheia de desafios logísticos e tecnológicos que não oferecem saídas simples.
Mas antes de adentrar esse tema, é importante entender por que isso representa um problema a ser superado. A aviação sozinha é responsável por uma série de emissões e efeitos atmosféricos que contribuem significativamente para as mudanças climáticas. Mas mais que isso, ela evidencia as desigualdades globais de forma categórica: apenas 1% da população mundial foi responsável por metade das emissões de carbono ligadas à aviação em 2018 [1]. Ou seja, é uma indústria que atende a uma minúscula parcela da humanidade, enquanto seus efeitos têm impacto climático global.
Não se deixe enganar pelo dado apresentado acima: apesar de atender a uma minoria em termos proporcionais, o volume das operações aéreas é monumental. Segundo a plataforma de rastreamento de voos FlightRadar24, em apenas um dia de março de 2023, foram registrados 253 mil voos comerciais, o equivalente à decolagem de aproximadamente 3 voos por segundo [2]. Nesse mesmo dia, foi quebrado também o recorde de voos simultâneos que chegou a 22 mil aeronaves no ar em um dado momento do dia. Dada a escala desse setor, fica evidente que seu impacto é global e expressivo, e que realizar a transição sustentável dessa indústria o mais rápido possível é imprescindível.
Aviões elétricos: futuro ou ficção?O causador de mudanças climáticas mais discutido é, sem dúvidas, a emissão de gás carbônico (CO2), e no setor de aviação não é diferente. A queima de combustíveis de avião resultou na emissão de 918 milhões de toneladas de CO2 apenas em 2018, o que representa 81% das emissões do setor. Isso é tão significativo que se considerássemos a categoria como um país, essa ranquearia em sexto lugar na lista de maiores emissores de CO2 do mundo [3], logo atrás do Japão. A emissão de CO2 é um dos maiores desafios a serem enfrentados, uma vez que existem limitações técnicas que dificultam a descarbonização.
Uma delas é a chamada densidade energética do combustível. Isso é, quão leve e compacta a fonte de energia de uma aeronave precisa ser para sustentar o voo, sem o sobrecarregar. É por esse motivo que o querosene é utilizado atualmente em praticamente todos os voos comerciais, já que cumpre esses requisitos perfeitamente. É também por isso que a lista de alternativas é muito enxuta, o que faz com que engenheiros do mundo todo tenham que inovar para propor soluções.
Um exemplo claro das dificuldades que essa restrição impõe é a tentativa de eletrificar aeronaves, de maneira análoga ao que vem sendo feito no setor automobilístico. As baterias que temos atualmente são simplesmente muito volumosas e pesadas para seu conteúdo energético. Além disso, oferecem uma limitação inédita: diferentemente dos combustíveis líquidos que liberam peso quando consumidos, as baterias se mantêm pesadas durante todo o voo, diminuindo drasticamente o alcance da aeronave. É justamente por isso que essa tecnologia é proposta apenas para voos de curto-médio alcance, mas existem dúvidas de se alternativas de transporte mais sustentáveis poderiam substituí-los nessas distâncias.
Como tentativa de solucionar esse impedimento das baterias, surgem as chamadas soluções elétricas híbridas, que introduzem o hidrogênio na equação. A ideia aqui é utilizar o gás não apenas na combustão — que, por sinal, não produz CO2— mas também para gerar eletricidade na própria aeronave através do processo de eletrólise reversa. Essa eletricidade seria utilizada para complementar a potência das turbinas, resultando em uma eficiência energética sem precedentes.
Esse é justamente o objeto de estudo do ZEROe, projeto liderado pela Airbus, que busca viabilizar essa tecnologia e demonstrá-la até 2025 [4]. Um dos maiores desafios a serem superados é ligado justamente à densidade energética do hidrogênio, que requer pressurização extrema e, portanto, armazenamento em tanques muito pesados, se forem feitos com tecnologias tradicionais. A gigante do setor aeronáutico vem estudando a tecnologia para uso em aeronaves a jato, a hélice e até um design inovador que será discutido mais à frente.
Outro ponto importante é que o hidrogênio utilizado para reabastecimento precisa ser produzido utilizando energia limpa, mas isso é tópico para outro artigo.
O mundo complexo dos biocombustíveisEm outra frente, existe a busca por análogos ao querosene que sejam mais sustentáveis. Há uma gama de soluções sendo testadas, que ganham o nome de SAFs (Sustainable Aviation Fuels, ou Combustíveis de Aviação Sustentáveis), mas aqui voltaremos a atenção aos chamados biocombustíveis. Essa categoria de SAF é produzida a partir de plantas ou algas e se propõe a neutralizar as emissões de carbono decorrentes de sua queima, uma vez que a matéria orgânica usada para sua produção sequestraria o carbono da atmosfera durante seu crescimento. No entanto, existe uma preocupação de que talvez eles não sejam tão sustentáveis quanto aparentam.
Essa é a conclusão de um estudo publicado por cientistas mexicanos, que analisaram possíveis cenários do crescimento dessa indústria. O fato é que para suprir a demanda global por biocombustíveis, seria necessária uma quantidade imensa de terra voltada ao cultivo de matérias primas usadas para a sua produção. Segundo os autores, isso implicaria em graves impactos socioambientais, principalmente na América Latina, causados pelo que chamam de vinculação da terra à oferta energética. Entre potenciais efeitos, listam a escassez de alimentos em nível global, práticas ecologicamente predatórias ligadas à monocultura e até a promoção do desmatamento [5].
Além disso, os biocombustíveis não solucionam por completo o sério problema que o setor enfrenta com a imprevisibilidade dos preços de combustível. Estima-se que entre 20% e 30% das despesas de uma companhia aérea são apenas devido ao preço do combustível [6]. No caso do querosene, esse custo é altamente imprevisível, já que é ligado às flutuações do preço do barril de petróleo [7]. Apesar de oferecer uma alternativa ao mundo dos combustíveis fósseis, os biocombustíveis implicam uma imprevisibilidade climática, uma vez que o cultivo das matérias primas pode ser afetado por condições climáticas adversas.
Há muita pesquisa sendo feita para que esses problemas sejam contornados e existem uma série de outros SAFs sendo desenvolvidos com variados níveis de sucesso. Mas isso é tema a ser discutido em detalhe em um próximo artigo.
Para além das emissões de carbonoOs impactos causados por esse setor vão muito além das emissões de CO2. De fato, estima-se que os fenômenos não-carbônicos da aviação contribuem até duas vezes mais para as mudanças climáticas [8]. O mais expressivo deles é o que chamamos de contrails ou trilhas de condensação — aqueles rastros deixados por aviões no céu — que podem persistir na forma de nuvens rasteiras, alterando a forma como a atmosfera reflete a luz solar. Durante o dia, elas agem como um espelho, refletindo igualmente a radiação que vem do sol e a que tenta escapar da superfície. No entanto, quando o sol se põe, elas apenas impedem que a superfície resfrie, promovendo um desbalanço na absorção de calor, assim contribuindo para o aquecimento global [9].
Tanta é sua relevância que pesquisadores da Google Research em conjunto com a American Airlines e a Breakthrough Energy se debruçaram sobre o tema para encontrar formas de minimizar o efeito. E os resultados da parceria foram surpreendentes: usando modelos de Inteligência Artificial para realizar pequenos ajustes nas rotas dos voos, evitando áreas de alta umidade, alcançaram uma diminuição de 51% na formação de trilhas de condensação. Tudo isso com um gasto de combustível adicional de apenas 2% [10].
Isso abre portas para que esse tipo de tecnologia seja implementado por outras companhias aéreas, oferecendo uma solução promissora para esse problema.
Fim da aviação comercial como a conhecemos?Enquanto pesquisadores buscam soluções para as aeronaves atuais, há quem acredite que esse modelo tem data de validade. E o sucessor parece saído de um filme de ficção científica, o chamado design BWB (do inglês, Blended-Wing Body). Diferentemente do modelo convencional, esse novo modelo que lembra uma arraia é desenhado para que não precise de asas para se manter no ar, uma vez que o corpo inteiro da aeronave atua como uma. De certa forma, é como se tornássemos a asa de um avião alta e larga o suficiente para que os passageiros pudessem caber dentro dela. O conceito não é exatamente novo, mas seria a primeira vez que seria adotado em larga escala no setor de aviação civil.
Esses esforços vêm sendo liderados, mais uma vez, pela Airbus com seu protótipo MAVERIC, que busca demonstrar a tecnologia. A empresa afirma que o uso desse modelo poderia diminuir em até 20% o consumo de combustível pela aeronave [11]. Como descrito anteriormente, ainda existe a possibilidade de que esse modelo seja combinado com sistema híbrido de propulsão a hidrogênio, algo que vem sendo explorado pela empresa. Isso por si só não significa que o modelo seja completamente sustentável, porém certamente demonstra algum investimento da indústria na criação de alternativas que impactem menos o clima.
Um mosaico de soluções e um futuro incertoÉ fácil se deixar levar por tecnologias inovadoras, em um setor que afirma tão fortemente o seu compromisso com a mudança. Mas é imperativo que isso seja observado através de uma lente crítica, para além das promessas e entender como elas, de fato, impactarão o mundo em que vivemos. Não podemos cometer o erro de solucionar a crise climática à custa do acirramento das desigualdades e da transferência dos impactos para os países da periferia do sistema econômico. A transição virá e devemos lutar para construí-la de forma a beneficiar o mundo em toda a sua complexidade humana, ambiental e cultural — e não apenas em sua objetividade física. De nada adianta consertar o clima, se continuarmos nos enterrando na miséria da desigualdade.
Revisado por: Mara Gama
Referências Bibliográficas[1] Stefan Gössling and Andreas Humpe. The global scale, distribution and growth of aviation: Implications for climate change, Global Environmental Change, Volume 65, 2020, 102194, ISSN 0959–3780, https://doi.org/10.1016/j.gloenvcha.2020.102194.
[2] Tweet do FlightRadar24, salvo em página estática na archive.today, http://archive.today/c1FmJ.
[3] Xinyi Sola Zheng, Dan Rutherford. Fuel burn of new commercial jet aircraft: 1960 to 2019, White Paper, The Internacional Council of Clean Transportation, 2020. https://theicct.org/sites/default/files/publications/Aircraft-fuel-burn-trends-sept2020.pdf.
[4] Airbus. ZEROe: Towards the world’s first hydrogen-powered commercial aircraft, Innovation, Low Carbon Aviation, Hydrogen, https://www.airbus.com/en/innovation/low-carbon-aviation/hydrogen/zeroe.
[5] Noé Aguilar-Rivera, Christian Michel-Cuello, José Juan Cervantes-Niño, Fernando C. Gómez-Merino, Luis Alberto Olvera-Vargas. Effects of public policies on the sustainability of the biofuels value chain, Applied Biotechnology Reviews, Sustainable Biofuels, Academic Press, 2021, Pages 345–379, ISBN 9780128202975, https://doi.org/10.1016/B978-0-12-820297-5.00004-9.
[6] The Geography of Transport System. Passenger Airlines Operating Costs, United States, 2019, https://transportgeography.org/contents/chapter5/air-transport/airline-operating-costs/.
[7] International Air Transport Association (IATA), What is SAF, https://www.iata.org/contentassets/d13875e9ed784f75bac90f000760e998/saf-what-is-saf.pdf.
[8] D.S. Lee, D.W. Fahey, A. Skowron, M.R. Allen, U. Burkhardt, Q. Chen, S.J. Doherty, S. Freeman, P.M. Forster, J. Fuglestvedt, A. Gettelman, R.R. De León, L.L. Lim, M.T. Lund, R.J. Millar, B. Owen, J.E. Penner, G. Pitari, M.J. Prather, R. Sausen, L.J. Wilcox. The contribution of global aviation to anthropogenic climate forcing for 2000 to 2018, Atmospheric Environment, Volume 244, 2021, 117834, ISSN 1352–2310, https://doi.org/10.1016/j.atmosenv.2020.117834.
[9] S. Delbecq. Sustainable Aviation: levers of action and prospective scenarios, ASP, 10th Jun 2023. ISAE SupAERO.
[10] Carl Elkin, Dinesh Sanekommu. How AI is helping airlines mitigate the climate impact of contrails, Google, Company News, Sustainability, https://blog.google/technology/ai/ai-airlines-contrails-climate-change/#:~:text=While%20these%20extra%20clouds%20can,create%20contrails%20can%20reduce%20warming.
[11] Airbus. Imagine travelling in this blended wing body aircraf: The Airbus MAVERIC demonstrator is pushing innovative aircraft design to the limit, Newsroom, 2022. https://www.airbus.com/en/newsroom/stories/2020-11-imagine-travelling-in-this-blended-wing-body-aircraft.
[12] M. Niklaß, B. Lührs, V. Grewe, K. Dahlmann, T. Luchkova, F. Linke, V. Gollnick. Potential to reduce the climate impact of aviation by climate restricted airspaces, Transport Policy, Volume 83, 2019, Pages 102–110, ISSN 0967–070X, https://doi.org/10.1016/j.tranpol.2016.12.010.
[13] IEA, Are aviation biofuels ready for take off?, IEA, Paris, 2019, https://www.iea.org/commentaries/are-aviation-biofuels-ready-for-take-off.
[14] Hannah Ritchie. Climate change and flying: what share of global CO2 emissions come from aviation?, Our World In Data, 2020, https://ourworldindata.org/co2-emissions-from-aviation.
[15] Hannah Ritchie. Cars, planes, trains: where do CO2 emissions from transport come from?, Our World In Data, 2020, https://ourworldindata.org/co2-emissions-from-transport .