Maré escarlate - A vida cotidiana à encosta
Viver deslumbrado como práxis revolucionária
A palavra deslumbre, em sua essência, significa embaçamento da vista, deixar turvo. Do latim lumen, consiste na breve retirada da luz.
Subindo os degraus recobertos por azulejos brilhantes — reluzentes quase como brim — andava sem rumo por este centenário e monólito sustentador das grandes crônicas cariocas: Morro da Conceição. Popularizado recentemente pelas ações culturais de resgate à memória afro-brasileira, locais como a Pedra do Sal voltaram a permear o eixo de vislumbre turístico: o samba nasceu por lá, originalmente ponto de encontro dos que viriam a ser os pioneiros dessa manifestação disruptiva e contagiante do melhor em relação ao espírito tropical e seu aconchego.
Caminhar pela rua do jogo da bola e observar casarios em art déco à brasileira insere qualquer um em plano espraiado, posso ir, indo, passos ritmados como carrilhões reproduzindo sinos angelicais: me sinto beatificado; não em modo expresso, não estou no paraíso e nem o almejo, mas perscrutar essas vielas enche de vontade. Apenas vontade de. Deixa o complemento livre como o véu esvoaçante à varanda na esquerda (um trecho de Clarice estampado). Sou tomado por uma sensação de modorra possível somente no dito estado de graça – mentalmente cantarolo “C’era una volta il west” do mestre Morricone – sem perigo iminente, e nas reconfortantes cenas cotidianas sou feliz como um primeiro canto. Sou também “kafka à beira mar”, peregrino só, por uma vizinhança desconhecida em companhia de gatos à espreita. Observo, enquanto caminho, os inúmeros bangalôs e seus viventes; no poente se escutam apenas três coisas: motores ao longe abafados, pequeninas cigarras & água a jorrar. São sempre os moradores de idade mais avançada regando. Pequeno estudo de campo (observação insolente) quanto mais se envelhece, maior a vontade de cultivar um jardim! Talvez seja a sensação perene de controle sobre vida & morte.
Num desses caminhos que resguardam inúmeras histórias e ainda as seguem mantendo, avisto três senhores à mesa de um botequim, imagem já conhecida, com pouca disposição se escuta o noir dos padrões de ás e copas, encobertos pelo tilintar acobreado das garrafas. Recostados às cadeiras de algum patrocínio, a face voltada ao céu assume uma predisposição de controle, os olhos cerrados, os únicos capazes de descortinar o mundo. Àquele modo, passam as horas de suspiro, um lamenta o labor do dia seguinte e como gostaria de sempre botar o corpo à rua, para arar a vida. As demais falas estão mais para monólogos internos de consolo, já inebriados pelo riso e relaxar boêmio. No lado lambido por sombras, alguns saem à calçada, cuja representação é o máximo de mundo no instante, vai se tecendo um afago familiar, entre conversas sem fim próprio, a companhia mútua é a linguagem. Nas duas cadeiras restantes penso em todos os rostos que me abriram o caminho, a moça de vestido cotelê na Cosme Velho, tão incisiva ao segurar o guarda-chuva — como se a própria guardasse a chuva entre os dedos — em passo desconcertado a subir o Santuário de São Judas, olhar perdido que poderia ser tomado por uma das causas. O rapaz de andar catatônico no rio Minho, me dardejando olhares antes de confluir sob a multidão anônima. A linha do mar sempre na altura de seus olhos. Queria vê-los aqui, sentados sem procissão, abrindo as portas ao inutilíssimo. Viver à pura vontade nos dias automáticos voltados ao produtivo também é ato revolucionário. O meu lazer me conecta aos outros que, tão diferentes, vistos agora longe da educação bancária, não são « outros / eles » todos compartilhamos a mesma vontade de! os amores, as paixões, os interesses e com certeza o mesmo senhor avecino.
O botequim segue estático, com os salões interiores sempre esparsos feito maré em zona portuária, as mesas dispostas ao lado externo estão mirradas no que um dia foi um pórtico de casa neocolonial, de olhos forçosos poderá ver alguma azulejaria. Agora com o seu substrato de origem reocupando o controle, a construção finalmente soa harmônica. Sempre vejo pássaros em fachadas que outrora foram funcionais, muitas espécies de aves buscam recantos inóspitos e – quase de caos sutil – para soerguer seus ninhos: se inúteis porquê local de genitura? Heras indomadas, juntas florescem e quando necessário desfalecem o monólito à frente, seguem o caminho da luz.
Sou rasgado de meus devaneios quando um deles solfeja um arranjo familiar, em estado de aguçada curiosidade me aproximo mascarado de desinteresse, diz entre risos: é Ennio Morricone! Fiquei deslumbrado. Um véu fino descortinou e além da vista, pude sentir o incrível entusiasmo compartilhado: outras pessoas também são movidas pelas minhas paixões. Por mais que durante um segundo tenha pensado ser capaz de moldar a realidade, é apenas mais uma coincidência oportuna; e isso fez o momento célebre, especial: as minhas paixões também são apreciadas, compartilhadas por outros. um senso de pertencimento se instaurou, a erva no meu interior desenrolou furtivamente. Chegada a hora náutica, as edificações se deixam cobrir pelo manto difuso solar, a maré banhada em escarlate, últimos vestígios solares do dia – casa por casa – o mundo recai a um teatro de sombras em compasso ao farfalhar das cartas sobre a mesa. As ondas revoltas reincidem a vontade de Ocupar o que antes era nosso, os projetos de desigualdade bem-sucedidos nesta cidade o afastaram, ele, o mar. Antes beirava as escadas de morros assim, hoje nem sua areia dissipante salva: faixa inútil, cria-se o recuo. Ah, mas se esta maré tecida a rios de ouro se alumiasse o morro! Talvez assim os passantes de baixo despertariam seu olhar fixo na frente de que se nada vê.
Retomada a descida, sinto o ar espesso da vida corrente, turvo em longa exposição. O desquietar carioca é muito distinto das outras cidades, cada pessoa possui um mar dentro de si, mas de ondas contidas que não sabem ao certo aonde desaguar. Morro acima, o varal de roupas pingantes na hora azul é um lembrete – manter-se sempre expectante.
Revisado por: Mara Gama
Fotos: Rosemiro Júnior